A prece
Era uma família tradicional católica que por gerações mantinha o
hábito de rezar antes de dormir, antes das principais refeições, e ao embarcar
para uma longa viagem, já que as curtas não ofereciam tanto risco.
A oração era uma forma de se concentrar, relaxar, limpar a
mente e dar luz ao espírito. _ diziam.
O bisavô ensinou ao avô, que ensinou ao pai, que por sua vez ensinaria ao filho.
O menino que estava no fim da linhagem ainda era muito
pequeno e não compreendia o sentido da oração, mas, o pai achou que já estava
na hora de ensinar a tradição ao filho. Em uma noite tranquila, o menino já se
preparava para dormir, quando seu pai foi até sua cama, deitou-se ao seu lado e
propôs-lhe uma conversa com Deus.
Como assim papai, Conversar com Deus!
E ele vai nos ouvir? _ indagou o menino.
Filho, na oração nós falamos com Deus, falamos com o universo e
falamos com nós mesmos, já que somos parte desse universo, e Deus está em cada
um de nós.
Então, o pai explicou ao filho a razão de se fazer uma
oração; na oração trabalhamos com a fé. _ dizia ele. _ pedimos paz de espírito,
proteção para o nosso lar, saúde para nós e para todos que amamos, e pedimos
coragem para enfrentar a noite escura...
O menino ansioso, já não aguentava mais esperar para começar com a
tal oração que lhe parecia uma coisa maravilhosa.
Combinaram que o pai falaria as palavras da oração e o filho
repetiria.
O pai pediu que se concentrassem, fizeram silêncio, e então,
começaram; O pai falou _ “Pai nosso”... _ O filho repetiu_ “pai nosso”... _ O
pai continuou _ “que estás nos céus”... _ O filho hilário, perguntou _ O que é isso
papai, é um pássaro ou um avião?
O pai, surpreso, caiu na gargalhada, os dois riram, o filho ria do
pai e o pai ria do filho.
A tão esperada oração acabou ficando para o dia seguinte.
E assim, ambos dormiram felizes naquela noite.
João D. Ferreira.
O verdadeiro artista
O verdadeiro artista é gerado por uma grande necessidade que o
impele a aprofundar-se cada vez mais no objetivo do seu trabalho.
Fazer arte não é difícil, qualquer pessoa pode fazer, desde
que tenha cultura interior e disponibilidade para criar.
O difícil é comportar-se, viver a vida de um exímio artista. É
preciso um esforço constante de personalidade, uma busca incansável em tempo
infinito às razões que fundamentam sua identidade.
Para ser um verdadeiro artista é preciso romper com certos padrões
da sociedade convencional, com modelos que tendem a limitar o homem e sua
concepção, seus objetivos.
É preciso aproximar- se por sobre a loucura, ser o psicólogo e seu
paciente.
Aceitar as mães e os políticos, e compreender destes o impulso.
É preciso “desmarchar” sobre as gerações e arrancar de suas
verdades históricas o bálsamo para suas feridas.
Qual artista que não teve consigo, a dor da criação?_ Van Gogh, “Deus e
o diabo na terra do sol”, Rorô, “Mulheres de Atenas”, Antônio Francisco
Lisboa, Você, eu e todos os, Alegres
dramáticos.
Se me perguntares para que servem os artistas, lhes direi: para
mobilizar e viabilizar a cultura. Se não sabes para que serve a cultura, lhes
direi: a cultura não serve apenas para derrubar o rei, mas também, para criar o
estado e modificá-lo quando for preciso. A
cultura mostra ao homem o quanto ele é maior do que imagina.
Quanto ao artista, este objetiva ocupar-se apenas da criação. A verdade do artista está na busca
ao mistério que se abriga na arte.
(João D. Ferreira) Doni, Rio, 13/01/95.
Noite
de Natal
Primeiro vieram os
velhos, depois os moços, por fim eu e ela. Na mesa repleta, a ceia de natal.
Nas paredes as telas da bela arte anfitriã. Nas mãos as taças erguem-se
brindando o reencontro. Lá fora o estampido de fogos de artifício. Na boca o
gosto do beijo e das castanhas.
O natal se repete em
sons e imagens de tempos distantes. Ouço frases de meus avós na voz de um jovem
e todos o aplaudem sorrindo.
Ela se aproxima
trazendo- me um beijo, um cacho de uva, uma taça de vinho e um coração cheio de
amor. Recostamos ao sofá para ouvir o anfitrião ao piano.
Primeiro, aquecimento
com Chopin, Strauss e depois, discorre-se um invejável Beethoven. Ouve-se
permeando um breve silêncio, uma nota que nos toca o coração e nos leva a
refletir.
Alguém diz; feliz
natal! E levanta um brinde ao menino Jesus.
João
Donizete, 16/06/1987, Rio de Janeiro.
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Sujando
a fonte
Quando a minha amada
aqui chegou, tudo era modesta como aquela límpida e saudável água que bebíamos
do pote de barro queimado.
Hoje na tentativa de
um mundo melhor, desenvolvi o engenho, manipulo bactérias e reúno os átomos,
dentre outras coisas. Só que, já bebemos da água suja. E a minha amada reclama.
João
Donizete, 03/10/1988, Formosa.
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Desempregado
Acordo tarde, sol não
há! Um dia cinza me recebe frio sob um velho casaco de lã. Olho melancólico no
espelho o enegrecer da barba no rosto pálido. Sem escolher, apanho na biblioteca
um livro qualquer e me jogo ao sofá.
A campainha soa,
recebo um amigo que me traz o conforto humano. Mais tarde, me pego entediado,
vou andar na areia da praia. A brisa fria me faz pensar, me deleito em
pensamentos férteis. Sinto-me feliz e sólido em mim. Volto para casa e da
janela vejo o movimento incessante da rua. Ansioso, aguardo a amada que vem me
trazer amor e a complexidade do viver a dois.
Doni,
Rio, maio de 1986.
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Em memória
de Giorgio
Aqui jaz um amigo,
irmão, companheiro e sobre tudo um lutador peso pesado. Um filho que também
sonhava e aventurava. Foi solidário e justo. Derramamos o mesmo suor, subimos o
morro juntos. Dividimos a mesma trilha e brindamos ao vício de sermos felizes. Separamo-nos
e saudosos outra vez nos procuramos.
Depois a notícia,
fúnebre e triste; mataram o Giorgio! Um tiro na cabeça. A justificativa, motivo
banal.
Enfim a lágrima, o
soluço, o adeus; enfim, a vida vivida em vão, em vício.
Doni,
Rio, 1995.
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